A Nova Boca do Lixo: História e Motivações
A Nova Boca do Lixo surgiu por volta de 2001 na região do Grande ABC Paulista, idealizada por um grupo de estudantes de cinema digital que buscavam romper com a estética colonizada predominante e pouco representativa do cinema nacional. Eles rejeitavam uma estética pequena-burguesa imposta pelo capitalismo selvagem que dominava o mercado audiovisual.
O período ficou caracterizado pela criação da ANCINE em 2002, selando a dita “retomada do cinema nacional”, que começou de forma confusa e contraditória com o governo Collor em sua política neoliberal, ao fechar a EMBRAFILME em 1990 e criação da Lei Rouanet (1991), e também a Lei do Audiovisual (1993) na gestão Itamar Franco.
A política neoliberal do governo Fernando Collor de Mello, expressa pelo fechamento da Embrafilme e pela criação da Lei Rouanet, reflete uma visão econômica e cultural que buscava a redução do papel direto do Estado na economia e, ao mesmo tempo, criação de mecanismos para estimular o setor privado, inclusive na cultura.
Ao extinguir a Embrafilme em 1990 — que era a principal estatal responsável pela produção e distribuição do cinema nacional desde a década de 1960 — o governo Collor deu um recado claro de redução da intervenção estatal, alinhado a uma agenda neoliberal que defendia a desestatização, a abertura de mercado e o enxugamento da máquina pública. Essa decisão, sob o programa de privatizações e redução da presença do Estado na economia, provocou uma crise sem precedentes no cinema brasileiro, com praticamente o fim da produção audiovisual nacional e uma grande falta de financiamento público direto.
Entretanto, a política cultural não foi deixada de lado completamente. Pouco tempo depois, em 1991, surgiu a Lei Rouanet, sancionada por Collor, mas idealizada por Sérgio Paulo Rouanet e sua equipe, que passou a oferecer um modelo inovador de apoio à cultura baseado em incentivos fiscais. Esse modelo buscava abrir espaço para a participação do setor privado na cultura, estimulando que empresas e pessoas físicas investissem em projetos culturais em troca de benefícios fiscais, com o objetivo de substituir parcialmente o financiamento direto estatal.
Essa combinação revela a tentativa de um governo neoliberal de encontrar um equilíbrio entre retirar o Estado do financiamento direto para o setor cultural, mas ainda incentivar a cultura por meio de políticas públicas de estímulo à iniciativa privada. O modelo da Lei Rouanet representava uma política pública que apostava na mobilização do mercado para o desenvolvimento da cultura, em vez de um modelo estatal tradicional.
No entanto, essa transição não foi isenta de dificuldades e crises. A ausência do apoio estatal direto, especialmente no cinema, causou um vácuo e um período crítico para a produção cinematográfica brasileira, que só foi parcialmente superado com a "retomada" a partir do governo Itamar Franco e de Fernando Henrique Cardoso, que aprimoraram mecanismos de incentivos e retomaram o fomento cultural institucionalizado.
Em suma, o governo Collor, ao fechar a Embrafilme, simboliza a retirada radical do Estado da produção cultural direta, enquanto a Lei Rouanet revelava o novo paradigma da política cultural neoliberal: o estímulo à iniciativa privada e o uso de incentivos fiscais para promover cultura, configurando uma política pública híbrida, que dependia da participação de mercado para sobreviver, mas que precisaria ser complementada para enfrentar as dificuldades da produção cultural nacional, que permitiram a captação de recursos por meio da renúncia fiscal, estimulando investimentos privados no cinema, mas que embora tenha aumentado a produção e o investimento, ficou restrita a grandes produções e não conseguiu atrair um público significativo.
Entre 2001 e 2004, período de criação do coletivo Nava Boca do Lixo, foi uma época de transição política no Brasil, com a saída de FHC e a ascensão de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência, marcando o início de um novo ciclo para o cinema nacional. Em 2001 a Medida Provisória nº 2.228-1, de 6 de setembro de 2001 assinada por Fernando Henrique Cardoso, estabelece princípios gerais da Política Nacional do Cinema, criando a ANCINE, instituindo o PRODECINE e o Fundo FUNCINES, alterando a legislação sobre a contribuição para o desenvolvimento da indústria cinematográfica. O governo Lula deu continuidade e promoveu diversas regulamentações que incentivaram o cinema, como o aumento das cotas de exibição para filmes brasileiros pela ANCINE. Mas ainda assim nos questionavamos por que, apesar dessas iniciativas, a população ainda não frequentava os cinemas? O que faz com que as pessoas prefiram outras atividades ao acesso à cultura nacional, especialmente de sua própria identidade?
Essa situação reflete o monopólio cultural e ideológico exercido por interesses econômicos poderosos que impõem valores e cultura por meio do sistema capitalista. Esse sistema desvaloriza as raízes culturais brasileiras, promovendo o consumo passivo de padrões estrangeiros, o que contribui para a alienação cultural e o enfraquecimento da identidade nacional.
Na região do Grande ABC e especialmente em Santo André, onde há diversas atividades culturais, o público permanece pequeno e pouco diversificado. A pergunta segue: seria esse fenômeno reflexo de um desinteresse real ou de questões socioeconômicas, como a falta de recursos para transporte?
Frente a essas dúvidas, iniciou-se uma análise que abarca o contexto social contemporâneo, a estética audiovisual e a narrativa dos filmes brasileiros atuais, colocando em discussão os dois movimentos históricos mais relevantes: o Cinema Novo e o Cinema Marginal.
O Cinema Novo, geralmente situado entre 1955 (com "Rio 40 Graus", de Nelson Pereira dos Santos) e 1980 (marcado por filmes como "Bye Bye Brasil", de Carlos Diegues, e a obra final de Glauber Rocha), teve duração aproximada de 25 anos. Mais que datas exatas, é importante reconhecer que esses movimentos se prolongam e intercruzam com o tempo. Por exemplo, filmes como "Cidade de Deus" retomam a ideologia do Cinema Novo, mas não sua estética original.
O Cinema Marginal, ativo basicamente entre 1968 e 1973, refletiu as transformações socioculturais da época e buscou inovação narrativa e estética, apropriando-se da contracultura, do diálogo lúdico e do experimentalismo em contraposição à tradição do Cinema Novo. Enquanto o Cinema Novo começou a se contrapor à liberdade autoral em função da busca por ampliação do mercado, o Cinema Marginal radicalizou seu discurso, distanciando-se desse caminho.
Hoje, pode-se estabelecer uma analogia entre o Cinema Novo e o Partido dos Trabalhadores (PT) — um grupo que moralmente anuncia ideais, mas que na prática diverge dessas posturas — e o Cinema Marginal, simbolizado pelos anarquistas, que rejeitam compromissos e falhas éticas.
Nesse contexto, a Nova Boca do Lixo surge como um grupo que “limpa as farpas”, utilizando a tecnologia digital, uma estética globalizada e um discurso político-social que mistura poesia, romance e narrativa clássica.
Esse coletivo heterogêneo — formado por advogados, jornalistas, publicitários, médicos, sociólogos, pedagogos e psicólogos — iniciou sua trajetória com experimentações técnicas e práticas, produzindo curtas experimentais como 30 Anos em 3 Minutos, Bipolar, Contrastes, Persona, Labirinto, Cine-Tangará, Casarões, Lapso e Fugas.
O objetivo principal do grupo é discutir o comportamento humano na sociedade e a ação política, levantando questões para intervir no ambiente em que produzem. Inicialmente, focaram na viabilidade dos meios de produção e numa estética de fácil assimilação social, buscando espaços alternativos de exibição. Posteriormente, passaram a construir roteiros críticos da realidade social degradada e, por fim, dedicaram-se à divulgação e à definição de um público-alvo específico. O curta OMI - Outro Mundo Impossível, marca essa nova fase, recebendo os prêmios de melhor roteiro, melhor ideia original e melhor filme no Festival de São Caetano do Sul.
O grupo amadureceu, filtrando divergências para focar na essência ideológica. A discussão filosófica voltou a incidir sobre valores humanos, propondo um rompimento com a história e as teorias anteriores, valorizando a estética da imagem como principal elo de identificação com o público.
Define-se a Nova Boca do Lixo (NBL Filmes) como um coletivo em movimento de “cinema de guerrilha” pelo seu questionamento social contundente, tendo como objetivo transformar as relações humanas com o meio, com o próximo e com a própria região. Busca destruir conceitos reacionários e construir valores que refletem a realidade brasileira contemporânea, fundamentados na observação da ordem social, na preservação ambiental e no desenvolvimento sustentável.
Sua base ideológica combina tendências anarquistas e comunistas, que são libertadoras e, ao mesmo tempo, rigorosas em princípios. Uma diretriz fundamental é que os direitos e valores individuais devem prevalecer sobre as ordens sociais impostas. Por isso, seu trabalho no campo social se aproxima do papel investigativo e observador, despertando para a complexidade desses ambientes.
Palavras-chave que orientaram a NBL Filmes incluem: Cinema político, Copyleft, Libertação dos meios de comunicação de massa, Sustentabilidade, Meio ambiente, Coletivismo, Transformação dos valores individualistas, Nova Era, Nova Essência, Ação social direta, Apropriação de terras, Estetiké, Questionamento social, Provocação moral, e Nossa Éressência.
Esses elementos sinalizam o caráter único e renovador da Nova Boca do Lixo, que busca uma arte cinematográfica comprometida com a realidade e a transformação social.
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